Ensaio do Mês de Março

      O mês de março é o "Mês da Mulher", mas a maioria das pessoas só homenageia as mulheres no dia 8. Pois bem, hoje serei um pouco mais pessoal e crítica do que o costume, uma vez que, como uma jovem mulher (com cara de 12 anos, mas isso não é culpa minha), sou representante desse "grupo".
       Felizmente, fui criada em uma família que nunca tentou limitar os meus sonhos. Meus pais sempre me incentivaram a estudar e a cursar o curso que eu quisesse quando chegasse ao Ensino Superior. Já quis ser engenheira, ortodontista, historiadora, diplomata, tradutora... sei que sou enormemente privilegiada em ter pais que nunca me desmotivaram a seguir a profissão que eu quisesse.
        Antes de expor meus argumentos, contarei um pouco a respeito das mulheres a quem devo minha existência e cujas histórias conheço muito bem. Minha avó (materna) nem mesmo sabia o que era uma faculdade. Vinda de uma família tradicional e criada no interior do Goiás, ela só frequentou a escola primária, até o atual quinto ano do Ensino Fundamental. Aos 14 anos, ela, os pais e os irmãos vieram para Brasília (tecnicamente, Taguatinga), em busca de emprego e de melhores condições de vida. Enquanto o pai e os irmãos trabalhavam nas construções do Plano Piloto, ela trabalhava como faxineira e dividia o serviço da casa com a irmã mais nova, pois a mãe tinha catarata e e estava quase sem visão. Um dia após completar dezessete anos, ela se casou com um pedreiro vindo da Bahia para construir Brasília, mas que tinha a ambição de comerciante. Embora meu avô a tratasse com respeito e a amasse, ela nunca teve a oportunidade de sonhar além do matrimônio e da maternidade. A vida dela foi condicionada a isso, ao papel que a mulher deveria desempenhar segundo a "moral" e os padrões vigentes ainda na década de 1960.
         Minha mãe brincava com os irmãos; era, segundo ela mesma, uma "moleca" que subia árvores, corria descalça na rua, pulava muro e aprontava com os irmãos. Ela conta que queria ser fotógrafa, mas que o pai a repreendia, dizendo que "isso é coisa de homem, você vai é ser professora". Minha querida mamãe começou a trabalhar cedo: aos 13, trabalhava em uma banca de feira do fim de semana. Ela conta de uma patroa que nem mesmo lhes dava trocado para o almoço. Mais tarde, com 16 ou 17 anos, ela passou a dividir seu tempo entre o trabalho no comércio, como lojista em uma loja de roupas pela manhã, e os estudos, no turno vespertino. Aos 20 anos, depois de muita luta, ela concluiu o Segundo Grau (Ensino Médio). Pensou até em cursar uma faculdade, mas seria igualmente exaustivo e financeiramente inviável para ela continuar a cotizar seu tempo entre trabalho e estudo (nesta época ela já trabalhava em período integral). Daí em diante o foco era somente o emprego. Aos 26 anos casou-se com meu pai. Desde então, ela é "dona de casa" por opção, e acompanhei de perto o tanto que essa "profissão" é subestimada. Sempre fui fã da minha mãe. Sempre ouvi os conselhos dela, pois a considero muito sábia. Ela me ensinou a respeitar o próximo, a não desvalorizar o outro e me mostrou o quanto sou privilegiada por ter uma vida tão confortável e acomodada.
           Desde criança sou cercada por mulheres inspiradoras - além da minha mãe e da minha avó materna, minhas tias, minhas professoras e minhas heroínas da televisão e dos livros me influenciaram bastante. Aos 7 anos eu já era uma grande admiradora de autoras como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lygia Bojunga e Cecília Meireles. Isso sem falar que a minha princesa da Disney preferida era a Mulan (a melhor princesa da Disney que você respeita). Na minha pré-adolescência, eu era a fã número um da Annabeth Chase, da série Percy Jackson, e já me proclamava filha de Atena. Aliás, uma das coisas que mais me chamou a atenção quando comecei a ler essa saga foi as personalidades das personagens femininas. Annabeth era inteligentíssima e sabia lidar com a luta tête-a-tête; a deusa Atena era praticamente a mulher que eu gostaria de me tornar; havia também Ártemis, Clarisse, Bianca, Zoe, Hazel... Passei a me interessar pelos livros de "jovens adultos", os quais, na época, ainda não eram todos iguais. As minhas referências passaram a ser, assim como as personagens, as autoras. Herminone e J.K. Rowling, Katniss e Suzanne Collins, Jeanine e Veronica Roth (sim, eu sei que a protagonista de Divergente é a Tris, mas eu não gosto dela até hoje e por isso elegi a "vilã" como minha personagem preferida na trilogia). Entre o 9° do Fundamental II e o 2° ano do Ensino Médio, meu vício era séries de televisão. A minha preferida era Agents of SHIELD, cuja representatividade feminina (além da diversidade) deveria ser seguida por todos os outros programas televisivos. Ser uma Jemma Simmons ou uma Agente Carter ou uma Dana Scully era a minha meta para a vida. Com 13 anos eu já tinha uma noção do que era o feminismo e do quanto a representação feminina era fundamental para a vida de uma garota. Meus professores também apresentaram a mim e aos meus colegas e minhas colegas de classe outras protagonistas, mulheres reais, nas diversas áreas do conhecimento. Nas ciências da natureza, Marie Curie, Rosalind Franklin, Lynn Margulis, Lise Meitner, Émilie du Châtelet. Nas artes visuais, Frida Khalo, Artemisia Gentileschi, Georgina de Albuquerque, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Georgia O`Keefe. Na literatura, Jane Austen, Mary Shelley, as irmãs Bronte, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Carolina de Jesus, Lygia Fagundes Telles, Virginia Woolf, Maya Angelou. Nas ciências sociais, Simone de Beauvoir e Harriet Martineau. Ouvi histórias de mulheres cuja coragem entrou para a história, como Joana d'Arc, Rosa Parks, Mary Winsor. Descobri que foi, de fato, Maria Leopoldina que assinou o documento da Independência do Brasil, e que a Princesa Isabel era muito mais do que "a filha de D. Pedro II, aquela que assinou a Lei Áurea". Fiquei feliz quando Cármem Lúcia se tornou a presidente do STF. Lembro-me também de, no sétimo ano, ouvir a notícia de que uma menina não muito mais velha do que eu tinha corajosamente levado um tiro porque se recusou a deixar os estudos, em um país onde as meninas não podiam frequentar a escola - desde então virei uma grande admiradora de Malala Yousafzai.
             Minhas próprias professoras também serviram (e servem) de modelo. Tive professoras em todas as matérias, até mesmo Física. Do Jardim I, com a Tia Tatiane, ao Ensino Médio, com a Andreia, a Adriana, a Ana Júlia, a Beth, a Damiane, a Flávia, a Isabela, a Leiliane, a Marilene, a Marine, a Niviene, a Penha... essas e todas as professoras que já me lecionaram fazem parte de quem eu sou hoje. Minhas professoras da universidade com certeza não serão diferentes.
             Fora do ambiente escolar, passei a descobrir por conta própria outras mulheres que mereciam um maior destaque. Na fotografia, descobri Vivian Maier, Lee Miller, Eve Arnold, Dorothea Lange, Helen Levitt, Diane Arbus, Alice Austen, Gertrude Kasebier. No cinema, Sofia Coppola e o seu enigmático mundo feminino, Patty Jenkins e sua obra-prima, "Mulher Maravilha", recentemente, Greta Gerwig, Dee Rees, Ava DuVernay e Rachel Morrison. Na literatura, Chimamanda Ngozi Adichie, Agatha Christie, Margaret Atwood, Ruth Rendell. Na arquitetura, Chu Ming Silveira, Sophia Hayden Bennett; no design, Ray Eames. Até no jornalismo, passei a conhecer e admirar profissionais como a Andréia Sadi, a Maju, a Miriam Leitão, a Cláudia Safatele... Descobri que Natalie Portman não era só uma das "mocinhas" do cinema, mas também uma poliglota, graduada em psicologia na Universidade de Harvard, uma ativista e diretora de cinema tanto nos EUA quanto em Israel. Descobri que Emma Watson frequentou a renomada universidade Brown enquanto gravava um filme e que hoje é uma das embaixadoras da ONU Mulheres.
              Para mim sempre foi óbvio que uma mulher poderia ser delicada e forte ao mesmo tempo; emocional, feminina, estressada, boêmia, introvertida, vaiodosa, comportada, tomboy, festeira, sonhadora, quieta, barulhenta, geek, intelectual, curiosa, "piriguete", atleta, artista, pacifista, política, juíza, dona de casa, faxineira, jornalista, cientista, escritora, prostituta, dona de empresa, engenheira, pilota de avião, soldado, presidente de um país, reitora de uma universidade, negra, parda, mulata, branca, amarela, índigena, loira, morena, ruiva, de cabelo crespo, de cabelo liso, curto, comprido, tingido, alta, baixa, gorda, magra, com dentes tortos, com espinhas, com seios pequenos, pode usar saia, short, calça, bermuda, vestido, macacão, biquíni. Uma mulher pode ser mãe, ser esposa, ser casada, separada, solteira, bagunceira, organizada, sensual, acatada, modesta, rica, pobre, humilde... adjetivos e substantivos não faltam, pois, como humanas, somos multifacetadas. A pluralidade feminina não deve ser motivo de chacota, nem esteriótipo. Se com os homens não é assim, por que é diferente para nós? Quem nunca ouviu "loira burra", "toda feminista é feia", "foi estuprada porque tava usando roupa curta", "se não se arrumar nunca vai achar marido", "um dia você vai mudar de ideia (sobre não querer ter filhos)", "tá de TPM, é?", "tem que aprender a cozinhar", "pede pro teu pai abrir a garrafa/trocar a lâmpada/levantar essa coisa pesada", "senta como uma lady", etc? Não quero ser motivo de piada nem de repreensão. Quero ser autêntica. Quero ser eu. Quero ser tudo isso e não abrir mão da minha feminilidade.
              Portanto, espero que esse texto, este ensaio, "um pouco" mais longo do que o normal, tenha esclarecido a importância de reivindicarmos cada vez mais o espaço que nos é roubado, a visibilidade que a nossa luta merece, não só no dia 8 de março, mas durante o ano inteiro. Não é só com um "Time's Up" de Hollywood que iremos mudar o mundo. Ainda há uma longa jornada pela frente, mas continuaremos a conquistar, de pouquinho em pouquinho, terras até então impenetráveis para nós, para que as meninas do futuro possam sonhar ainda mais, de modo que sejam as mulheres que elas quiserem ser.
           
               

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