Resenha #21: O Segredo de Joe Gould

"Enquanto esbanjava sua herança, Gould fez uma coisa que lhe proporcionou enorme satisfação. Comprou um rádio grande e reluzente, foi até a Sexta Avenida e o despedaçou a pontapés. Não gostava de rádios."

O livro de hoje é, creio eu, pouquíssimo conhecido. Eu mesma só ouvi falar dele há duas semanas, quando um professor pediu para o lermos para a aula seguinte. É um livrinho de não mais que 100 páginas, dá para ler em dois dias. Trata-se de um perfil (Professor Gaivota) e de um comentário deste, escrito por Joseph Mitchell (que foi um dos principais contribuidores para a revista The New Yorker entre as décadas de 1930 e 1990). Segundo João Moreira Salles, no posfácio do livro, Mitchell compõe (suas obras) com tanto gosto e carinho que: “a sensação é a de que está lambendo os beiços enquanto escreve” e que parece impossível não terminarmos o texto com a impressão de que o mundo vai muito além das aparências. Para o autor de O Segredo de Joe Gould, ninguém era desinteressante, nem pequeno demais para ser sujeito de uma intrigante narrativa.

Joe Gould, de quem eu também nunca ouvira falar até então, considerava-se o último boêmio. Perambulava pelas ruas de Nova Iorque (até hoje me dói escrever Iorque em vez de York), tendo preferência pelo bairro de Greenwich Village, na região sudoeste da ilha de Manhattan. Ele dizia estar escrevendo o livro mais extenso da história, titulado História Oral: cerca de doze vezes maior que a Bíblia e, segundo seus cálculos, continha mais de 9 milhões de palavras escritas... por extenso. Um excêntrico mais do que um boêmio, era isso o que ele era: tirava a camisa e subia nas mesas para dançar (isso ainda nos anos 1940!), vivia mais bêbado do que sóbrio, recusava muito dinheiro no bolso e dizia falar a língua das gaivotas, havendo já traduzido poemas para ela.

Acontece que Gould não era um louco qualquer. Logo descobrimos que ele veio de uma das famílias mais ricas e antigas da região da Nova Inglaterra (parte nordeste dos EUA), que cursou medicina em Harvard e, depois de um tempo de formado, renegou tudo para dedicar-se à sua literatura. Determinado a escrever uma história, mudou-se para Nova Iorque e passou a viver as semanas com não mais do que cinco dólares no bolso (às vezes até menos: chegava a andar sem nenhum tostão).

A História Oral nada mais é do que uma proposta para narrar a "história cotidiana", vivida por pessoas normais e por aquelas à margem da sociedade. Gould conta a Mitchell que passa horas ouvindo conversas e conversando com pessoas na rua, que às vezes pega o metrô e escreve sem parar, até o fim da linha mais longa. Hoje, não acho que consideraríamos relevante escrever sobre o povo do dia-a-dia; afinal, deixamos material exageradamente maciço para os historiadores futuros investigarem (imaginem só as teorias a respeito de como os memes começaram e por que eles se difundiram tão rapidamente no início do século XXI). Mas, naquela época, creio que era bem inusitado escrever um livro sobre a vida que todo mundo tinha - por isso livros de História "clássicos" falam sobre épocas longínquas.

O que achei mais bacana no livro, e que depois comentamos em sala, é o fato do autor parecer se identificar com Gould; assim como ele, Mitchell também observava e escrevia sobre pessoas "invisíveis" e até mal-faladas. Era um bom observador, no geral, e tinha paciência com seus perfilados (tanto é que, desde a apuração até a publicação do perfil passaram-se seis meses; enquanto O Segredo de Joe Gould só foi lançado em 1964, 12 anos após a morte do "Professor Gaivota").

Em resumo, foi uma história bem diferente das quais estou acostumada a ler, mas me prendeu muito desde o início. Sobrecarrega um pouco as referências a bares e restaurantes da cidade, mas dá para relevar, afinal, a revista não se chama New Yorker à toa. E afinal, qual é o tal segredo de Gould? Aí eu não revelo (embora você até consegue suspeitar desde o início)!

Espero que vocês gostem, se decidirem ler!

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