Resenha #25: O Processo

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Escolhi começar esta resenha com a ilustração acima porque é mais ou menos assim que eu visualizo as histórias de Kafka. Elas sempre me vêm à mente como os desenhos de Escher: são confusas, parecem não ter uma estrutura ordenada (nem início, nem meio, nem fim), e perdem-se "em si mesmas". É como uma rua sem saída na qual você adentra e, no final das contas, é obrigado a retornar ao início e seguir em outra direção.

Tentarei explicar o inexplicável que é O Processo de Franz Kafka, escrito por volta de 1914. De início, informo que trata-se de um livro inacabado e que só foi publicado graças a um amigo de Kafka, Max Brod, após a morte do autor em 1924. Por causa disso, algumas partes estão incompletas e o leitor é obrigado a voltar-se às notas de rodapé e aos trechos riscados pelo autor (uma espécie de apêndice no final do livro). Pessoalmente, não achei que isso foi um empecilho; em nenhum momento senti que a leitura ficou menos fluida por causa desses adicionais - pelo contrário, até ajudaram um pouco na minha compreensão das lacunas deixadas ao longo do texto. O livro muitas vezes me deu a sensação de ser enfadonho, mas, no geral, tive a sensação de dever cumprido ao terminá-lo.

Sem mais delongas... 

"Alguém deveria ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã". É dessa forma que o protagonista, alto funcionário de um banco, descobre que está sendo acusado de uma violação da lei que ele (jura que) não cometeu. Ele simplesmente acorda e logo é surpreendido com dois homens batendo à porta de seu quarto e anunciando a detenção. Ninguém sabe como e nem por que o processo se iniciou, mas logo no primeiro capítulo somos informados de que ele já estava em andamento quando K. recebe a notícia.

É só isso que sabemos durante todo o desenrolar da história. Nas repetidas vezes em que o protagonista afirma que não é culpado, outros personagens o afrontam e o questionam: a locadora do apartamento onde ele mora afirma que ele não pode simplesmente ser acusado ao acaso; um de seus acusadores até mesmo afirma que "ele reconhece não conhecer a lei e ao mesmo tempo afirma não ser culpado". Meu pai, que já havia lido este livro, comentou que aos poucos o próprio K. passa a  questionar sua culpabilidade, mas eu não interpretei assim. À medida que o processo (o qual decorre ao longo de um ano) avança, o que notei foi a atitude retraída que o acusado vai, aos poucos, adotando: ele, que antes aproveitava qualquer oportunidade para se defender, passa a se posicionar apenas quando questionado.

Duas coisas que me chamaram a atenção foram a falta do requerimento de um advogado na fase "inicial" do processo, e o fato de que todos os personagens, misteriosamente, fazem parte do tribunal. No caso do advogado, é interessante que, quando finalmente é mencionada a ideia de contratar um advogado, este parece mais do que desnecessário para a defesa de K. (e o próprio acusado depreende isso). No caso de todos participarem do tribunal, creio que seja mais uma das ironias de Kafka: no final, todos estão, de fato, ligados a esse "sistema jurídico" inexorável: das meninas e do pintor e ao sacerdote.  

No estilo de escrita deste livro (e não me lembro se era assim também em A Metamorfose), Kafka utiliza muito orações subordinadas e também a ordem indireta. Isso dá ainda mais a noção de uma narrativa infindável e que fica andando em círculos. A estrutura textual está em uma incrível harmonia, de forma que é um acréscimo ao enredo.

Desde antes de ler este livro, eu já imaginava que haveria críticas à burocracia, mas Kafka me surpreendeu ao trabalhar de forma tão evidente e bem composta a respeito desse e de outros pontos. Ele remete ao funcionalismo público, à invasão da vida privada na vida pública (e vice-versa), ao poder de sedução da mulher para a persuasão, ao caos dos "cartórios", etc. São tantos assuntos trabalhados durante a obra que quando eu tentei organizar minhas anotações, não consegui. É impressionante como textos como este, escritos há mais de cem anos, conseguem ser tão relevantes hoje quanto na época em que foram elaborados.

O processo vai adiante, mas não o acompanhamos tão de perto quanto antes: depois de tentar resolver suas questões jurídicas no tribunal (que, aliás, é literalmente um quarto em um prédio cortiçado), K. decide resolver suas questões "por fora". Ele procura algumas pessoas, como o pintor retratista dos juízes (que o ajuda mais do que o advogado de defesa), e se depara com outras, como o sacerdote/capelão do presídio (o qual narra uma história super relevante acerca da inacessibilidade da lei). Por mais que tente, K. nunca consegue acessar aos juízes de alto escalão, nunca entende o porquê de sua acusação e é convencido de que nem mesmo conseguiria uma absolvição permanente. 

Você deve estar se perguntando se o tal processo chega a uma conclusão. Depois de tudo o que escrevi, pressupõe-se que não (uma vez que é uma história inacabada), mas a verdade é que existe, sim, um final concretizado para a situação de Josef K.. Como de costume, não vou estragar a vida de ninguém com spoilers, mas é um fim um tanto esperado (porém não menos chocante). Mesmo O Processo sendo um livro complexo de se ler, ele é uma importante referência literária, útil para a vida acadêmica e, quem sabe, para intelectualizar uma conversa com amigos ou parentes. Fica aí a dica de leitura!

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